quarta-feira, 24 de março de 2010

O dia em que Dourado me deu uma aula sobre Shakespeare

O dia em que Dourado me deu uma aula sobre Shakespeare

por Thiago Dottori

Eu adoro BigBrother. Não sou um especialista, não tenho pay per view, nem lembro o nome de antigos participantes, mas acho o programa legal pra cacete; muito bem conduzido, a edição tem momentos brilhantes e alguns capítulos tem um baita roteiro. Roteiro em reality show? Sim, ali tem roteiro e dos bons. Isso pode parecer óbvio, mas é mais sério do que eu pensava. Chego lá.

A coisa que mais estava me intrigando nessa edição era o fato de sempre torcer pra quem era eliminado. Morango, Cacau, Michel, Serginho, um a um os meus preferidos foram baleados nos paredões do confinamento. E a cada paredão eu xingava o Brasil, o conservadorismo, a caretice da classe-média brasileira e geralmente ia dormir meio puto com a decisão, reclamando com a minha mulher “como é que podem deixar um proto-fascista lá dentro e eliminar esse amor de pessoa?”. Eu não tinha solução pra essa pergunta até que na edição do último domingo eu comecei a rabiscar a resposta, ou pelo menos uma resposta que fazia sentido pra mim: no BBB 10, a audiência não está votando na melhor PESSOA, mas no melhor PERSONAGEM.

Me senti bem burro por ter demorado tanto pra entender algo que já parece claro pra todos. Eu pensava que, por se tratar de um reality show, a gente estava diante de gente “de verdade” -- e então era só escolher qual o sujeito(a) dotado dos valores mais sublimes e tratar de dar logo R$1,5 milhão pra ele(a). Mas, caramba, é um programa de TV, a gente vê as pessoas numa tela, em episódios, mediadas pela edição, reagindo a estímulos propostos por um autor... Então, nesse caso, os princípios da dramaturgia são bem mais valiosos que os morais.

Repara. É comum chamar o programa de jogo e se referir aos outros participantes como jogadores. Não à toa, a palavra jogo remete ao inglês “play”. E, em inglês, interpretar é “to play”. Escrever uma peça é playwriting. Interpretar um personagem é “play a character”. Pensando assim, acho que o jogo -- que eu entendia como a tática de sobrevivência dentro das regras do programa -- ganha uma melhor tradução no jogar do teatro, de atuar, de criar um bom personagem. Daí que humildemente eu perdoei o Brasil e passei a tentar entender essa história. Afinal, se o Dourado é esse bom jogador que tanto falam, talvez ele seja exatamente o melhor personagem. Fui conferir e faz sentido.

A primeira característica importante do Dourado como personagem é que ele tem força de protagonista. Ele não é um sujeito que espera o mundo pra tomar uma decisão, mas é ele quem na maioria das vezes dá as cartas. Durante um bom tempo, a gente assiste ao BigBrother pelos olhos dele. Ele é o protagonista das principais tramas, o sujeito que toma as decisões e arca com as consequências. Como roteirista, sei que nada irrita mais o espectador do que um protagonista passivo, que não reage, ou que apenas reage, mas, enfim, que não toma as rédeas da própria história -- por mais boa pessoa que ele seja.

E se ele é o centro das ações, entendeu que já de cara deveria escalar uma parte do elenco para servir de escada pra sua busca. Lia, Cadu e até outro dia Fernanda e Anamara, todos estavam ali em função de Dourado e seus interesses. Quando escrevo um roteiro, acho que esse é um princípio importante: todos os personagens surgem em função do protagonista da história. Se um coadjuvante começa a ganhar destaque demais, logo preciso cortar as asinhas dele e devolvê-lo a sua função no jogo, que é voltar a iluminar a trajetória do protragonista -- exatamente o que o Dourado tem feito até agora. Até a disputa da Lia ontem no paredão parecia mais uma disputa entre o “Grupo do Dourado” e seu adversário. Acho eu que não salvaram a Lia, salvaram a amiga do Dourado.

Outro aspecto que deixa o lutador bem na fita da construção dramática: ele é o participante que tem o objetivo mais claro dentro de toda a trama. Ninguém mostrou até agora que quer tanto o tal dos 1,5 milhão, ninguém parece tão disposto a enfrentar as adversidades por conta do prêmio. Geralmente, um bom personagem vai com força atrás do seu desejo, não deixa de perseguir seu objetivo um instante sequer. Toda cena no roteiro é, de alguma maneira, sobre isso. Se o objetivo é claro e se o protagonista tem muita vontade de conseguir, a audiência compartilha a busca e passamos a gostar e nos identificar com o personagem -- se não, a gente se desinteressa e quer que ele vá catar coquinho.

Ainda assim, só vontade não basta. Dentro dessa busca pelo objetivo, é preciso ter coerência. E lá está o Jiu-Jiteiro batendo no tórax, gritando “essa eu mato no peito”. Ponto pra ele. Parece evidente pra todo mundo que o Dourado jamais deixou de ser coerente com aquilo que pensa -- mesmo se o que ele pensa é tosco, ele foi coerente na tosquice. De modo geral, a gente odeia personagem que diz uma coisa e faz outra -- como aquele vacilo clássico do Dicésar ao indicar o Dourado para o paredão. Com o Dourado isso não acontece: ele tem muita clareza nas suas ações, é sempre firme, direto. A gente é capaz de antecipar, pensar como ele irá agir, tomar uma decisão junto com ele e não se decepcionar. E isso cria ainda mais empatia. No BBB, milhões de votos.

O problema de ter coerência em excesso é que, se a audiência antecipa demais as ações do protagonista, ele perde a graça e a gente enjoa. É comum, num roteiro, tentar combater a coerência excessiva com contradição. Num personagem, contradição não é incoerência. Incoerência é dizer que vai fazer uma coisa e realizar outra. A contradição é diferente: permite a gente se surpreender sem se decepcionar, ou melhor, a gente se surpreende com prazer. E isso gera carisma -- outro preceito fundamental pra quem vai ser o foco de um filme. Ele é o cara durão que passa hidratante no cabelo; o bruto que por vezes é compreensivo e delicado com as mulheres. O lutador que destila ironias, um recurso de linguagem de certa maneira sofisticado. No último domingo, por exemplo, Dourado disse a Lia que via no Dicésar uma boa pessoa, um cara legal (acho até que já mudou de idéia), mas mostra que mesmo ele (um homofóbico?) abre uma possibilidade de aceitação. Um protagonista rico, cheio de idiossincrasias.

Essa possibilidade de aceitação introduz o capítulo seguinte: ele é um personagem que pode ter um arco, uma transformação ao longo da história (pelo menos, eu espero). Sua gênese é bem construída e conhecida por todos. O seu prólogo de apresentação aconteceu algumas edições atrás, quando ele era muito mais ogro do que agora. É visível que o cara está diferente, menos idiota e pelo menos um pouco mais doce. Acredito que o público do BBB adore histórias de transformação. E, se o Dourado for o vencedor dessa edição, me parece muito clara a superação do sujeito, rejeitado anos atrás, redimido anos depois -- ainda que com valores parecidos, com muito mais carisma, jogo de cintura e, por incrível que pareça, inteligência.

Dourado foi inteligente quando soube criar momentos de tensão na história. Um dos princípios da dramaturgia é a ideia de que você só conhece um personagem de verdade se você o coloca diante de dilemas, de situações limite. Nós, roteiristas, estamos o tempo todo atrás disso, colocando nossos personagens contra a parede -- e depois desesperados pensando como tirá-los de lá... Não dá pra descobrir a verdade sobre alguém tomando água de côco na praia. E o Dourado soube se colocar nessas situações (diferentemente de Cadu, por exemplo). Mais do que isso, ele percebeu que quanto maior o antagonismo, maior a força do protagonista. Então tratou de eleger não apenas seus coadjuvantes, mas também seus inimigos. Em especial, uma grande antagonista: Angélica.

Eu era um apaixonado pela Angélica. Achava a Morango a personagem mais interessante de todas. Disparado. Ela era doce e ao mesmo tempo forte, firme, sem ser grosseira. Inteligente, astuta, sacana e sexy. Angélica também criou a melhor subtrama da história do BBB: despertar a homossexualidade e a paixão na princesa Cacau, presa na torre, casada com o príncipe tolo. Era melhor que a trama principal, aquela que coloca todos atrás do milhão e meio. Fico pensando o quanto essa história não poderia ter rendido, tão bons eram os diálogos e o jogo erótico sublime estabelecido entre as duas. A gente poderia estar até hoje colhendo frutos desse encontro entre Cacau e Morango: Será que é hoje que a Cacau vai ceder? Será que o Eliézer vai flagrar as duas? Aliás, porque o Eliéser não estimula as duas? Ou melhor: por que o Eliéser não vai embora logo? Enfim, uma pena que tenha “d(o)urado” tão pouco: não à toa, Dourado mirou seu canhão diretamente na direção de Angélica. Ali estava a sua arqui-rival, a única que poderia colocar seu objetivo por terra. Logo, os dois iriam para o paredão.

Se não me engano, foi o paredão com mais votos até agora. Uma pena que o confronto tenha se dado tão cedo. É como se o clímax tivesse acontecido no meio do filme, como se o Homem Aranha enfrentasse o Duende Verde no meio do segundo ato... (acho até que o próprio Dourado foi perdendo um pouco da sua força à medida em que os estilhaços desse duelo foram desaparecendo). Mas o conflito era tão bom que durante algum tempo a história viveu da sua inércia. Logo depois, Eliéser jogou no lixo sua chance de se tornar protagonista quando aceitou a coroa de anjo da Cacau e, ato contínuo, além de condenar a própria namorada ao paredão, fugiu do confronto, coisa que nenhum bom protagonista pode fazer. Eles até podem, mas só porque o público não tem a chance de eliminar o sujeito e a gente continua com a história até ele tomar coragem; mas se tivesse um botãozinho no cinema, provavelmente na primeira fuga mandavam pra “rua!”. Como no BBB tem botão, não demorou uma semana para que Eliéser estivesse lá. Na semana anterior, a bela Cacau, ainda perdida pela falta de Morango, sem saber muito como agir (sem clareza de objetivo, sem um desejo forte, ou seja, um personagem fraco), também já havia partido.

Desde a saída de Angélica, não dava pra saber muito bem o caminho da trama. Pouco a pouco, o autor, Boninho, e seu narrador, Bial, foram habilmente convocando os jogadores a se tornarem melhores personagens, ou seja, saírem da condição de coadjuvantes para se tornarem protagonistas. Eles precisavam reforçar a trama, que ficou um pouco frouxa. Primeiro foi Fernanda, que saiu da castidade e passou a tentar dar algumas cartas, se tornando um belo bibelô erótico. Corpo pra isso ela tem, mas não acho que ela vá muito além desse personagem que desperta tesão. Precisa ser algo além de uma gostosa que se descobriu, isso segura só o primeiro ato, ou pequena uma subtrama. Serviu pra resolver um problema momentâneo da história, mas falta a ela um objetivo maior além do CAPSLOCK. A subtrama com Serginho rendeu, mas não foi suficiente -- e parecia um pouco falsa e mal desenvolvida. A Lia ofereceu a chance, se apresentando como arqui-rival, mas Fernanda tratou de passar o problema para Anamara. Se tivesse se colocado na linha de frente, talvez fosse uma candidata. Hoje acho que não é. Já a Anamara foi bem, mas correu o risco de se colocar de frente com o protagonista. O público não perdoou. Mas era uma personagem forte.
 Apostava nela na final.

Anamara foi quem melhor aproveituo a oportunidade do vácuo no antagonismo do BBB depois que Angélica partiu. Cresceu no jogo depois que decidiu não ser mais coadjuvante. Tinha objetivo claro, vontade de vencer o prêmio. Anamara brigava, discutia, ia pro pau. Isso dava força. O problema é que essa mesma força era sua maior fraqueza: Anamara não tem ponto nem vírgula na discussão e muitas vezes sua garra se confundia com histeria, simplesmente por causa do tom de sua voz. Um problema de ordem estética. E essa é outra regra cruel da vida de um roteirista: você pode escrever o melhor texto do mundo, mas se o ator não souber falar, você tá frito. Além de bater de frente com Dourado, via Lia, o timbre da voz de Anamara acabou com ela.

Lia venceu o paredão, mas não acho que leva o prêmio. Ela se perde entre algumas alternativas: não sabe se é coadjuvante do Dourado, se é uma mulher forte que encara de frente e se torna protagonista da história, se é uma chata conselheira ou se chora o dia inteiro tal uma mocinha de novela mexicana. Ela vai bem quando parece forte, irrita quando faz melodrama e distribui conselhos como quem dá panfletos no farol, e fica sem sal quando parece um apêndice do Dourado.

Bial e Boninho também chamaram Cadu para jogar, dizendo que é um problema ser muito diplomático. Mais uma vez o recado é dramático: deixe de ser coadjuvante e passe a ser protagonista. Para uma pessoa, na maioria das vezes, ser diplomático é uma virtude; para um protagonista, quase sempre é um problema de roteiro. Enquanto Cadu se esconde, pouco se sabe sobre ele. Tem carisma, é bonitão, mas falta viver um forte conflito de frente. Só assim a gente vai saber mais e, consequentemente, poder gostar mais dele. Ele parece estar sempre defendendo a causa dos outros, nunca a própria. Um bom coadjuvante. Exatamente o mesmo problema do Michel.

Eu achava o Michel um ótimo candidato: um sujeito adorável, simpático com todos, gente fina, divertido, engraçado, ombro amigo 24 horas. Enfim, eu adoraria tomar um chope com o Michel e votei pra que ele ficasse com o 1,5 milhão. Mas não sei se eu gostaria de ver um filme com ele no papel principal. Uma comédia talvez. Mas a audiência do BBB gosta de drama clássico. O Michel é um baita coadjuvante, mas foi expulso do drama como protagonista. Infelizmente faz sentido.

 O Dicésar por sua vez peca, e muito, na coerência e nos diálogos. Compensa tudo isso com excesso de vontade no objetivo -- ele também quer MUITO o prêmio, precisa dele e a gente sabe disso. Acho que todo mundo se surpreendeu com a prova de resistência, quando ele ficou quase até o fim, mesmo sendo visivelmente muito mais despreparado que o Cadu. Ali eu acredito que o Dicésar fez a diferença em cima do Serginho e conseguiu sobreviver na casa: apesar da falta de alguns problemas de construção de personagem, seu objetivo e sua vontade no jogo estavam muito mais claros e fortes que os de Serginho -- que hesitou entre agarrar ou não a Fernanda na subtrama e nunca demonstrou claramente o quanto gostaria do prêmio de 1,5 milhão. Pode até ter falado sobre isso, que queria, mas um personagem se dá através das atitudes e não das falas. Faltou força. Aquele “seje homem” do Dourado, dito ao Dicésar, fazia sentido ao Serginho e nada tinha a ver com a homossexualidade dos dois: seja protagonista da história, não se vitimize, encare de frente. Serginho não foi. Rua. Uma pena.

Enfim, entendo que o BBB 10 é um laboratório de dramaturgia ao vivo, com diversos personagens estimulados por um ótimo autor. Boninho está o tempo todo atrás de uma boa história e, principalmente, estimulando o conflito. Talvez por isso tenha chamado o programa de “jogo cruel”, “do mal”, ou algo parecido. É isso mesmo: drama bom é conflito, não tem outro jeito, é colocar um contra o outro, no limite. Muito provavelmente, se o Dalai Lama tivesse lá dentro, teria saído na primeira semana. As histórias dão esse nó: gostamos do Dom Corleone, gostamos do Zé Pequeno, do Capitão Nascimento e de tantos outros. Um filme, uma obra, nos promove o exercício da alteridade, de enxergar o mundo com outras lentes que não são as nossas. E esse é o grande barato da vida do roteirista: viver e lapidar boas histórias sem ter que julgá-las, mas estimulando o entendimento sobre o outro.

PS: não acho que o Bardo esteja revirando no caixão ao ver seu nome ao lado do de Dourado. Acho que ele riria dessa provocação. Muitas vezes tenho a impressão de que levam Shakespeare muito mais a sério do que ele se levaria.

Thiago Dottori é roteirista de Cinema e TV e membro do coletivo Casadalapa. Escreveu a série Trago Comigo dirigida por Tata Amaral. Junto com Bráulio Mantovani escreveu o roteiro do filme Vips, dirigido por Toniko Melo e com estreia prevista para o segundo semestre. Atualmente escreve uma série para o Canal HBO.